Lourenço Andrade entrevista Dominga Natália


1. Como está hoje a Comunidade Kalunga depois do episódio do desmatamento? Como a Comunidade está reagindo aos fatos?

A comunidade hoje, depois do desmatamento, está um pouco assustada porque tem que buscar amparo junto aos órgãos competentes; prefeitura, governo estadual e federal.

E esse desmatamento pelo que ficamos sabendo foi realizado na calada da noite e parece que a prefeitura está envolvida e nós não sabemos em quem confiar. E se a Prefeitura que deveria estar nos protegendo está envolvida, a comunidade fica muito assustada porque as coisas estão acontecendo na calada da noite. E isso tá acontecendo bem na parte que nós consideramos que é a nossa caixa da água, água praticamente de todo Quilombo. Então é muito revoltante esta situação para todo o território.

2. Quais são as demandas da Comunidade em relação ao território em relação aos governos federal, estadual e municipal?

A nossa demanda para os governos tanto federal, estadual e municipal é a concretização da regularização fundiária. É o que mais nos priva e nos incomoda. Isso tem mais de trinta anos, essa demanda, essa busca, esta luta…
e não concretizou tudo, mas nós almejamos esta finalização. E queremos políticas públicas …
O município é taxado como pobre, mas é pobre de políticas públicas: abastecimento de água para as famílias…as pessoas vão longe para buscar água no rio.


A falta de estradas nos priva muito, onde estamos não tem estradas para se locomover. Existem comunidades que até hoje não tem estrada. A associação local, que se fez de prefeitura, abriu trilheiros para ligar uma comunidade a outra. Não estamos pobres de riquezas, mas de falta de estruturas básicas, postos de saúde, hospital – no nosso município não consideramos que haja hospital, quando alguém sente alguma coisa, nem coagulante tem. Priorizamos junto aos nossos governantes uma atenção básica, não é nada demais
.
Quando ocorrem as primeiras chuvas, muitas comunidades ficam isoladas, mesmo com os trilheiros, pois tem os rios grandes e aí precisamos de pontes de pelo menos 20 m.
É uma vida toda lutando para conseguir uma ponte. É um absurdo!
Não precisamos de lavouras para contaminar nossos rios, nossa saúde.
Parece que tem uma coisa que os nossos governantes não sabem, que nós trabalhamos com agricultura familiar. Temos condições até de abastecer as cidades vizinhas, precisamos de estradas, os produtos se perdem porque estamos no meio da Serra e não temos escoamento adequado.

3. Você pode falar um pouco sobre como a Comunidade está enfrentando a pandemia?

A comunidade teve ações próprias de higienização sanitária com os voluntários, mas ficou cansativo. Mas mesmo fazendo isso tivemos o primeiro caso na comunidade e vimos o descaso com as pessoas que não tiveram os cuidados necessários. Teve um caso de uma menina que sofreu um aborto e foi para Brasília. Aí a colocaram na ambulância sem dar atenção e ela ficou lá trás sozinha e teve uma queda.

A gente já sente esse descaso de modo geral e na pandemia o descaso é total mesmo.
Na comunidade temos conscientizado, mas é como uma grande família, o contato é inevitável. Muitos não acreditam que a pandemia seja uma verdade, as pessoas ficam sem saber se é verdade ou não…

4. Quais os projetos da Associação Quilombo Kalunga no momento e mais a longo prazo?

A primeira questão é a segurança no território, para que possam usar,
usufruir e viver onde sempre viveram, nasceram e cresceram, plantando, cultivando e divertindo.

O projeto maior da associação é que as pessoas tenham o direito de ir e vir dentro do território, sentindo-se à vontade.
Queremos nos desenvolver com as próprias mãos, não ficar precisando de migalhas. Podendo estar produzindo na agricultura familiar para o consumo próprio e para exportar, para vender, quer sejam os frutos do cerrado ou plantas medicinais. A comunidade quer sobreviver de uma forma justa, não com migalhas.

Hoje a comunidade está dependendo de cestas básicas para a sua sobrevivência, sendo que podemos produzir favorecendo a todos. Almejamos o nosso próprio desenvolvimento, conseguir andar com as nossas próprias pernas. Fazer o que queremos, não o que é possível simplesmente.

5. Você pode falar um pouco da história do povo Kalunga na região e de cada Comunidade que se formou?

A história do povo Kalunga é muito longa, mas o que sabemos é que quando se formou, há mais de 300 anos atrás, vinham fugidos, muito antes da libertação da escravidão de áreas remotas, e se instalaram no meio destes vãos e ai foram crescendo as famílias, comunidades. Depois da libertação, muitas pessoas vieram também e aí as comunidades foram aumentando e se formando, cada vez mais isoladas, para que se evitasse a captura novamente.

Existem relatos que pessoas vinham, eram os “revoltosos”, que chegavam a cavalo e pegavam tudo que encontravam, levando as famílias a se refugiarem nas cavernas. Isso aconteceu pelo lado de Monte Alegre e de lá foram se espalhando pelo resto do território. Com o tempo as comunidades foram se espalhando. Eles transportavam as sementes no meio dos cabelos e sinalizavam pontos de encontro. Até hoje tem festa na comunidade que são os “Pontos de Encontro”, as Romarias …é algo que começou há muitos anos e ninguém sabe quando começou.

As comunidades não tinham acesso a pessoas de fora, isso começou com os garimpeiros, procurando áreas e alguns deles trouxeram a malária lá da Amazônia. Nesta época tivemos o primeiro contato com o pessoal da saúde, a SUCAM.
Mais tarde ocorreu um contato com uma antropóloga pesquisadora lá pelo lado de Monte Alegre, ela quis que desenvolvêssemos algo para termos acesso e nos apresentou a ideia de uma associação com o objetivo de dar eficácia à luta pela terra.

Eu me lembro da gente saindo de casa porque alguém ia colocar fogo com a gente dentro, vivemos isso.

Consideramos que conseguimos muitos avanços, tanto quanto os nossos antepassados. Hoje muita gente tem acesso ao estudo, isso foi um grande avanço para o Quilombo em geral. As pessoas conseguem ver as coisas de outro modo, embora muitos aproveitem das fraquezas das comunidades para benefício próprio e hoje isso diminuiu um pouco. Agora, com a associação e o seu regimento interno, estamos mais habilitados a saber o que fazer. No momento, para alguém pesquisar na comunidade, é preciso autorização da associação. Estamos com as regras nas mãos, mas antes era muito aberto e as pessoas aproveitavam.

Foram feitas 14 reuniões para eleger os delegados e criar o regimento interno. E mais 17 reuniões nas comunidades para que as demandas fossem trazidas por cada comunidade. E depois que foi aprovado o regimento interno por todas as comunidades, a reunião final foi feita em quatro dias em Cavalcante, para a aprovação final do regimento. Foi feito um curso de formação com representantes de cada comunidade, para facilitar os trabalhos da associação (AQK) em cada uma dessas comunidades, com três representantes de cada uma delas. São 56 representantes da associação hoje distribuídos por todo o território para ajudar na organização interna, com a demanda de uso e ocupação das terras, responsabilidade nos conflitos para que possam ser resolvidos lá mesmo. Já demos um grande salto, mas a luta continua. Esse é um resumo de tudo, porque tem muita história para trás

6. E sobre a preservação da Cultura Kalunga, o que está acontecendo de novo?

A cultura no Quilombo é passada de pais para filhos e através da vivência, aprendemos as coisas, as famílias junto em comunidades …tanto na produção como na organização, nos espaços, nas tradições, nas festividades, é tudo feito na vivencia.
Hoje já existem várias pessoas registrando estes acontecimentos, porque meu pai diz que no Quilombo a cultura vai se movimentando de acordo com o progresso que vai chegando… e a comunidade não quer ficar no atraso. Não acreditamos que a pobreza seja preservadora da cultura, a cultura continua, mas queremos que a miséria seja afastada, que as pessoas consigam ter a oportunidade de novas coisas, também para sobreviver. Nossa cultura está preservada, tem altos e baixos, às vezes a juventude não está muito interessada. Valorizamos a nossa cultura ao ver a do outro, que é diferente, e aí precisamos conhecer mais para valorizar o que temos.


O povo sem cultura é um povo sem identidade. Temos as nossas diferenças por estarmos num Quilombo Kalunga, de acordo com o que nós acreditamos, com nossos costumes, com nossas vivencias.
E só conseguimos ver isso ao ver a cultura do outro.

Dominga Natália

Comunidade Kalunga Engenho 2, Vice presidente da AQK.

Professora licenciada pela Educação do Campo – UFT, mãe e idealizadora do grupo de Sussa na comunidade.